Trecho do texto "O amor que sabe do tempo e do vento" de Eliane Brum.

Dias atrás liguei para meus pais e os dois se divertiam com as dificuldades de expressar o amor que sentem um pelo outro. Acontece o seguinte. Toda manhã meus pais acordam, mais ou menos no mesmo horário, e ficam abraçadinhos esperando o sol entrar pelas frestas da persiana enquanto conversam sobre a vida. O desafio, agora, segundo minha mãe, que é mais despachada, é encontrar uma posição em que não doa alguma parte do corpo de um e de outro. Ora é a coluna do meu pai que se anuncia, interrompendo o beijo, ora são os joelhos da minha mãe que gritam embaixo do cobertor. Então, ele aos quase 81, ela perto dos 76, gastam alguns minutos encontrando uma posição em que é possível namorar sem dor. Acabam achando. Quando não param para rir da própria condição humana, o que também provoca algumas dores.

Para mim, a imagem do dia dos namorados, essa data tão comercial que acabou de levar legiões aos shoppings, é a de meus pais achando uma posição para se abraçar entre as dores de um corpo que viveu. Acho que o amor começa com som e com fúria, mas aprende na passagem do tempo o valor das pequenas delicadezas, as manias de cada um que irritam, mas que fazem cada um ser o que é. Aquela mirada terna e quase secreta em direção ao outro que faz uma bobagem qualquer, para mim vale tanto ou mais que o furor do desejo. Aprendi isso observando meus pais, primeiro com ciúmes desse amor onde eu não cabia, porque sabiamente eles mantiveram essa parte só para eles. Depois, com curiosidade científica e, finalmente, com ternura.

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Para mim e para meus irmãos era um choque descobrir que na casa de alguns de nossos amigos os pais não se beijavam nem arrulhavam. Nós achávamos que era uma lei da natureza que determinava, geneticamente, o modus operandi dos pais. Fiquei indignada quando disseram, uns anos atrás, que Hebe Camargo tinha inventado o selinho. Todo mundo sabe que foram os meus pais.

O amor é assim. Cheio de coisas sem importância que fazem uma vida. Acho que a sabedoria dos meus pais foi ter percebido que eram essas pequenas delicadezas o que realmente importava. Que os desacertos e as trapalhadas teciam os enredos das histórias que iam bordando a nossa pequena saga. Ninguém nunca achou lá em casa que era fácil viver, por isso o difícil assustava, mas não nos metia tanto medo assim.

Gosto de pensar, quando acordo pela manhã, que meus pais estão procurando, apesar das dores de outono, uma posição para ficar abraçadinhos. E, assim, encaixados de amor, falar da vida enquanto lá fora, como Erico Verissimo tão bem percebeu, ruge o tempo e o vento, cada vez mais vorazes.

Fonte: Revista Época