Por Christian Ingo Lenz Dunker

O recente debate sobre a redução da maioridade penal levanta uma pergunta pouco confortável para psicólogos e psicanalistas: em qual idade, e sob quais circunstâncias, pode-se atribuir a alguém plena responsabilidade sobre seus atos? Pergunta que força uma fronteira entre o educativo e o jurídico. No Brasil, o menor de 18 anos não comete um crime, mas uma infração. Ele recebe uma medida "sócio-educativa", não uma pena. Ele não é privado de sua liberdade, mas internado ou tutelado pelo Estado. Também para o maior de 18 anos a prisão não é instrumento de punição, mas de reeducação e reintegração social. Isso mostra que a linha divisória entre o educativo e o judiciário, entre crianças e adultos, entre os imputáveis e os inimputáveis, deveria ser pensada mais como um litoral, com contornos móveis, do que como uma fronteira fixa. Neste litoral há momentos em que a maré está alta para adolescentes criminosos. Eles perpetuam crimes de atroz barbaridade, que convidam a uma emancipação automática, pelo engenho e astúcia mórbida. Crimes cruéis são próprios dos adultos, logo devem ser julgado pela lei dos adultos. Atos que envolvem prazer sádico, desconsideração pelo outro, motivo torpe ou fútil, deveriam ser considerados ainda mais graves, logo mais adultos. O caso máximo desta série ocorre quando estamos diante de alguém que sabe o que está fazendo, que goza com o que está fazendo e ademais instrumentaliza a lei em seu favor. Ser capaz de "jogar com a lei" praticando atos ilícitos dias antes de alcançar a maioridade é a evidência maior de que esta pessoa interiorizou a lei tão bem quanto qualquer outro adulto "esperto" e "esclarecido". O paradoxo aqui é que este modelo de adulto cruel, esperto e mal intencionado é apenas uma forma de contra ideal do que supomos ser a infância. Más novas. Crianças são cruéis, espertas e mal intencionadas. Basta dar-lhes os meios e a ocasião e as circunstâncias, que elas rapidamente exercem sua tirania, seu sadismo e sua capacidade de transgredir a lei. Freud continua correto ao advogar que recalcamos nossa infância. E o que sobra deste recalque é uma imagem falsa do que deveria ser uma criança.

Primitivamente o tema da minoridade não é educativo, psicológico ou jurídico, mas filosófico. No século XVIII, Kant veio a definir a maioridade como uso livre da razão no espaço público, introduzindo o conceito de autonomia, em oposição com a minoridade da infância, na qual somos tutelados, pela família e pelo Estado. Desde então autonomia associa-se com um percurso de individuação, envolvendo competências morais, discursivas e cognitivas convergentes com o processo de incorporação da lei. Geralmente entendemos que este processo se conclui quando o sujeito é capaz de seguir a lei porque ela adquiriu um sentido impessoal e necessário, não porque estamos coagidos pelo medo ou pelo desejo, orientados por inclinações ou interesses, movidos por exemplos e normas, mas porque livremente escolhemos nos submeter a lei. Daí que autonomia carregue consigo o sentido da autoridade, como se fôssemos todos autores da lei. Esta é a teoria moral do dever, que encontrou seu correlato psicológico em Piaget e Kohlberg e seu equivalente sociológico em Habermas e Rawls. Ser autônomo é ser capaz de se reconhecer nas leis que nos governam e se fazer reconhecer perante elas, inclusive de modo a aplicar, questionar ou transgredi-las. A psicanálise acrescentou um importante adendo a esta concepção ao notar que nossa relação com a lei é homóloga à relação que temos com o desejo.

Postular a redução da maioridade penal deveria basear-se em uma concepção de responsabilidade e autonomia. Esta depende de como, para um determinado sujeito, combinam-se suas condições para agir, saber e posicionar-se diante do prazer. Contudo o litoral entre saber e gozo é um mar revolto durante adolescência. Em uma semana o sujeito dá mostras do mais elevado pensamento lógico formal e reflexivo, para na situação seguinte agir por princípios de flagrante heteronomia irreflexiva ou mera impulsividade. A capacidade de contrapor casos e regras, de definir exceções e generalizações, de criar e negociar a lei, pela qual os laços com o outro se organizam, dão forma ao saber que chamamos de responsabilidade. A terrível travessia adolescente é ainda mais perigosa porque além de princípios o sujeito é convocado a dar provas de maioridade, ou seja, a produzir atos. Atos de reconhecimento e bravura, testes de desafio e incerteza, obediência e fé em um líder humano, inhumano ou extra-humano, ao qual supomos autoridade, fazem parte da lógica do acesso à maioridade. O domínio do corpo, das emoções e dos prazeres, de seus usos e abusos, compõe o terceiro ângulo de verificação da responsabilidade. A antiga noção de caráter nada mais era do que esta amálgama entre experiências corporais, geralmente decorrentes do mundo do trabalho, experiências de saber, criadas pelos dispositivos de educação moral e as experiências de teste, prova ou qualificação, chamadas pelos antropólogos de rituais de passagem.

Diante da dúvida de imputabilidade devemos investigar cada um destes ângulos que definem a posição de um sujeito. A forma como a lei de seu desejo se articula narrativa e discursivamente com o Outro social deveria definir o regime de retribuição, reparação ou de equilíbrio a que ele deve se submeter. É por isso que muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto, no qual em cada caso decide-se a maioridade ou minoridade penal do infrator. No Brasil, curiosamente, esta ideia não pegou. Talvez porque isso incremente imaginariamente a excepcionalidade do infrator que instrumentaliza sua condição de menor para praticar crimes. Nos países que adotam uma estratégia mais gradualista para a decisão de imputabilidade, esta depende de uma junta formada por instâncias jurídicas, educativas, médicas e psicológicas. Distribui-se assim as determinações pelas quais a posição de autoridade se exerce na formação do caso social, antes da partição entre caso jurídico ou caso educacional. O que o sujeito diz sobre o que ele fez, o modo como ele se coloca diante de seu ato, define a diferença de seu destino penal ou educativo e indica o tipo de tratamento médico ou psicológico que ele receberá. Responder pelos atos é uma função de linguagem, que presume a existência de perguntas. Responder não é só pagar, mas também assumir e impor consequências.

O progresso rumo à subjetivação da lei do desejo varia conforme as conquistas de cada um na relação entre responsabilidade e autoridade. A adolescência introduz um adicional de inconstância entre saber, prazer e agir que dão forma indeterminada à responsabilidade de cada um em cada caso. Finalmente, cada cultura ou subcultura terá sua gramática particular de exigências que relacionam autoridade e responsabilidade. Dito isso, o verdadeiro problema não deveria estar em saber se 18 anos são um critério melhor que 16 ou 12. Há os de 12 respondem com autonomia de 18. Isso é um exemplo crasso da minoridade de nosso pensamento penal. Há os de 18 que situam-se subjetivamente como os de 10. Reduzir a maioridade penal como forma de impor medo e respeito aos jovens adultos é uma maneira de desconsiderar esta diferença.

A datação da maioridade penal nos leva a uma falsa escolha. Ou enfatizamos a tendência universalista da lei, tornando mais pessoas iguais diante de uma fronteira comum mais inclusiva, ou escolhemos uma lei mais particularista, tornando sua aplicação regulada por litorais de transições, nos quais as exceções se tornarão a regra. Países de tradição protestante e onde vigoram formas jurídicas que incorporam melhor os usos e costumes, como Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e os países escandinavos tendem a escolher os sistemas litorâneos, com início aos 12 ou 14 anos da responsabilidade penal juvenil. Países de tradição católica, onde a herança do direito romano e do código napoleônico é maior, como o Brasil, tendem a escolher os sistemas de fronteira, com idade penal de 18 anos. Ou seja, a responsabilidade, assim como no processo de construção da autonomia, nunca é um processo exclusivo do indivíduo, pois ela é correlata do tipo de responsabilização, tutelar ou majorizante, que o Estado e as demais instituições sociais atribuem a si mesmas. Pensar que a redução da maioridade penal exercerá um efeito de medo, suficiente para criar a autoridade que falta para impedir crimes é apenas mais um exemplo da minoridade de nosso pensamento penal.

A forma como o debate sobre o assunto conduziu-se no Brasil desconsiderou estes argumentos mais elementares substituindo-os por lógicas punitivas do tipo: "se alguém tem responsabilidade para pegar em uma arma, deve ser responsável pelos seus efeitos". Ora, este tipo de pensamento é ele mesmo minoritário, pois está claramente amparando em uma falácia particularista, afinal é justamente pelo pouco apreço e ponderação sobre o valor da vida que alguém pode pegar e usar uma arma como um brinquedo. Mas este erro que é tomar o particular como universal liga-se a um segundo equívoco que reside no subtexto vingativo de quem se sabe protegido pela lei. Ou seja, se o enunciado da lei é falsamente kantiano sua enunciação é verdadeiramente sadeana: para os filhos de ricos, que demoram maior tempo para "crescer", em meio a um a infância protegida e postergada, mantemos a leniência da justiça para quem pode pagar por ela. Para os filhos de pobres, que devem crescer mais rápido, em meio a uma meia-educação para o trabalho, é preciso aplicar a lei mais cedo. Indiretamente legitimamos a chacina de adolescentes pobres e negros, atualmente em curso na periferia das grandes metrópoles.

Conclusão: a aprovação da lei da redução da maioridade penal é mais um capítulo de nosso novo ressentimento social. Ela dá eco aos que clamam por mais prisões e menos escolas. Ela é mais uma lei feita por síndicos que pensam o país como um enorme condomínio.

Fonte: Fórum Semanal