Por Christian Ingo Lenz Dunker.

Em 1985 o mito de Nise da Silveira já se espalhara pelos cursos de psicologia. A mulher que havia trocado cartas com Carl Gustav Jung. A psiquiatra que deixara o eletrochoque, o choque insulínico e a amarração de pacientes para trás. A crítica que trouxera a loucura para as artes. Estávamos em plena Abertura, e de todas as faces desse mito, aquela que parecia mais impactante era outra: uma terapeuta que recebia qualquer um que a ela se apresentasse – a ela e aos seus gatos.

O livro Imagens do inconsciente tinha aparecido em 1981, mas como continha imagens era francamente inacessível aos pobres mortais. Nossos professores, como João Frayze-Pereira,1 falavam dela e de sua receptividade, de como ela gostava de receber e de falar. Por isso, em 1985, quando Leon Hirszman apareceu com o documentário formado pela trilogia Em busca do espaço cotidiano, O reino das mães e A barca do sol, o impacto foi ainda maior. Logo organizamos uma incursão ao Rio de Janeiro e ao Hospital do Engenho de Dentro para encontrar o mito. Ela não estava. Primeiro pensamento: viajou, deve estar com Carl Gustav. Segundo pensamento: ocupada com um caso grave. Terceiro pensamento: somos tolos o suficiente para achar que ela vivia na clausura, só esperando nossa chegada. Assim como a imagem que tínhamos dos pacientes psiquiátricos, achávamos que ela só podia viver internada.

Anos mais tarde, lendo Foucault, entendi a força da ideia de que nos manicômios psiquiátricos do século XIX, o corpo do psiquiatra funcionava como metáfora do hospital – a fonte e origem da cura, o centro e o olhar da ordem, a razão e disciplina do cotidiano. Nosso desencontro com Nise da Silveira revelava muito sobre os mitos que ela empregou para subverter os muros da loucura. Muros que talvez ela tenha sentido na carne quando ficou presa, durante o Estado Novo, junto com Olga Benário e Graciliano Ramos. Muros que, junto com a antipsiquiatria de Laing e com a instituição negada de Basaglia, Nise tentava derrubar.

Nise partira da regularidade da produção pictórica de certos pacientes que pintavam formas circulares, envolvidas por borda quadrangular, mantendo no centro um tema geométrico. Tais figuras apareciam na mitologia hindu e no budismo tibetano como Mandalas, ou seja, instrumentos para a meditação envolvendo gestos rituais (Mudras) e cânticos inspiradores (Mantras). Esta ideia é recuperada na psicologia Analítica de Jung: as imagens não são apenas expressões da subjetividade de seu autor, mas instrumentos, suportes para dois processos correlatos, de simbolização e de individualização. Daí que eles não sirvam apenas para um processo de interpretação, que lhes restitua o significado, mas também ao processo de produção, pelo qual certas imagens são criadas ou encontradas. Jung, assim como Espinoza, era um grande universalista. Daí sua ideia fundamental de que o inconsciente desenvolve-se como um conflito que não é apenas de natureza sexual, mas tensão entre coletivo e pessoal. Fala-se muito dos arquétipos do inconsciente coletivo: velho sábio, persona, sombra, anima (feminino), ânimus (masculino), aion (si-mesmo). Muitas vezes esquece-se que Jung foi um grande teórico do inconsciente pessoal, para o qual a diferença entre a imagem e o símbolo é crucial. A invasão dos arquétipos, sem mediação no processo de simbolização e individuação, exprime uma catástrofe subjetiva. O desencadeamento da psicose seria o correlato estético deste processo: epifania, revelação, escatologia e sentimento de iluminação. Por isso cada percurso criativo é ao mesmo tempo uma viagem, uma travessia ou uma reconciliação a que chamamos de cura.

Três percursos: Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis

O trabalho de Fernando Diniz (1918-1999), ao organizar o espaço, de modo análogo ao de Piet Mondrian, aliás, em excelente exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, está baseado na experiência de invasão: "mudei para o mundo das imagens. As imagens tomam a alma da pessoa".2 Seu diagnóstico verdadeiro não é a esquizofrenia, mas a busca e reconstrução do espaço perdido. Internado por se despir em praça pública, seus estados inumeráveis e perigosos do ser, como a eles se referia Antonin Artaud (outro pensador central para Nise), sugerem que nem todas as esquizofrenias seguem o mesmo roteiro.

Adelina Gomes (1916-1984), por exemplo, realiza um percurso em tudo análogo ao mito de Dafne. Esta ninfa grega foi condenada tragicamente a ser perseguida por Apolo, que se apaixona por ela depois de ser punitivamente flechado por Eros. Termina transformada em árvore de Loureiro. Aqui é como se Matisse e Chagal fossem convocados como guias para esta aventura de reconciliação e luta com a maternidade. Depois de ser impedida pelos pais de levar adiante sua paixão juvenil, ela estrangula a gata da casa, sendo internada dali em diante até sua morte. Ela "fazia coisas em pedaços de pedra, catatônico, mas chega um momento em que ela faz umas mulheres que começam a puxar de dentro do peito entregando um coração".3 A metáfora do coração de pedra, qual árvore que petrifica o amor impossível, dá nome ao sofrimento, e assim o reconcilia com seus inúmeros sintomas.

O ciclo se completa com o surrealismo de Carlos Pertuis (1910-1977). Nascido de uma visão cósmica do planetário de Deus, retraduzida em seu bestiário de seres fantásticos, sua narrativa em torno da Barca do sol, retoma o mito persa ou egípcio de que a loucura é uma espécie de viagem rumo ao sol. Uma travessia do dualismo que constitui a realidade. Ademais a interpretação do mito do herói como uma saga de autorealização, a um tempo universal e singular, foi o pomo da discórdia entre Freud e Jung, no início dos anos 1914. O preço a pagar pela travessia é um estado de suspensão de si, que se manifesta no estupor e na sideração que muitos pacientes atravessam.

Estes três grandes heróis, que representam as centenas de outros que Nise desencarcerou, dando-lhes voz e luz, por meio de imagens, são os verdadeiros sujeitos da reforma psiquiátrica que veio a se consolidar no Brasil com a Lei Paulo Delgado de 2001. Suas ideias visionárias abriram os muros e portas do hospital psiquiátrico para outro lugar da loucura em nossa sociedade. A experiência do Engenho de Dentro trouxe para dentro do manicômio, além do próprio Jung, críticos como Mario Pedrosa e artistas como Ivan Serpa, precursores do concretismo. Ou seja, a ideia de situar mitos universais na produção singular de internos psiquiátricos era uma prática visionária já em 1946, não só porque facultava uma experiência de viagem, de travessia e de reconciliação que se multiplica nos inúmeros percursos da loucura, mas porque nos aproxima a todos desta experiência, também em cada um de nós universal.

Não me parece um acaso que em meio ao momento de maior dissenção social que já vivemos, desde os anos de chumbo da ditadura militar, estejamos presenciando o maior retrocesso desde então registrado em matéria de saúde mental. A nomeação de Valencius Wursch Duarte Filho, como secretário de saúde mental do Ministério da Saúde, em uma operação indecente de barganha política é o retorno de tudo o que Nise demorou uma vida para desfazer. Passeatas, manifestações e mesmo a própria ocupação, que persiste há mais de dois meses, de uma das salas do Ministério, parecem não ter voz nem luz contra a volta das piores trevas psiquiátricas. Espero que cada um que assista o premiado filme de Roberto Berliner, Nise: o Coração da Loucura, com estreia marcada para 31 de abril de 2016, retenha a força deste desencontro entre Nise e nosso atual momento, feito de muitos muros e demasiadamente poucos Carlos, Adelinas e Fernandos.

Fonte: Boitempo