Por Thais Gomes

A motivação para escrever este texto surgiu a partir de diversas inquietações sobre o trabalho no SUAS, sobre intersetorialidade, sobre os avanços e recuos na política de assistência social e sobre o desgaste a que estamos submetidos quase que diariamente, especialmente no que se refere a autonomia profissional neste âmbito – um incômodo daqueles que ativam a gastrite – brincadeiras a parte, o sentimento é de que precisamos matar um leão por dia. Sabemos que em nossos locais de trabalho estamos lidando com diversas realidades e especificidades, seja no perfil do município e do público-alvo da política, da gestão, na quantidade e qualidade da oferta dos serviços, na relação com as demais políticas setoriais e órgãos de garantia/defesa de direitos e tudo isso vai impactar de alguma forma a nossa prática profissional.

Com este texto convido-os a refletir sobre como tem se dado a relação entre a autonomia profissional, os princípios éticos das profissões que compõe o SUAS, o escopo da política de assistência social e as solicitações de relatórios que são feitas aos equipamentos especialmente pelos órgãos do sistema de justiça.

No que diz respeito a autonomia profissional, trabalharei na perspectiva de que esta se manifesta no arcabouço legal normativo da profissão, no caso do Serviço Social como um direito do Assistente Social, expresso no Código de Ética da profissão em seu artigo 2º, alínea h) ampla autonomia no exercício da profissão, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais incompatíveis com as suas atribuições, cargos ou funções; e que tem suas atribuições e competências claramente definidas na Lei 8662/93 – Lei de Regulamentação da Profissão. Cabe destacar que extrapola os objetivos desta reflexão um aprofundamento teórico da discussão de autonomia profissional dentro do Serviço Social, para quem se interessar em aprofundar um pouco mais sobre o tema deixo como sugestão o artigo "A relativa autonomia do assistente social na implementação das políticas sociais: elementos explicativos" de Vera Maria Ribeiro Nogueira e Silvana Marta Tumelero. (1) Dito isto, vamos ao que se propõe esta breve reflexão.

A NOB-RH/SUAS refere, no que diz respeito aos princípios éticos para os trabalhadores da assistência social, que

"a Assistência Social deve ofertar seus serviços com o conhecimento e compromisso ético e político de profissionais que operam técnicas e procedimentos impulsionadores das potencialidades e da emancipação de seus usuários", além de esclarecer também que "os princípios éticos das respectivas profissões deverão ser considerados ao se elaborar, implantar e implementar padrões, rotinas e protocolos específicos, para normatizar e regulamentar a atuação profissional por tipo de serviço socioassistencial."

Trazendo essa reflexão sobre autonomia profissional e os princípios éticos do trabalho na política de assistência social para o âmbito da proteção social especial de média complexidade, especificamente para o CREAS, apresento algumas pontuações relativas a seu papel no SUAS e na rede de atendimento para posteriormente apresentar as reflexões relativas a autonomia profissional neste contexto. Sabe-se que o CREAS é o equipamento de referência na oferta de trabalho social especializado de caráter continuado a família e indivíduos em situação de risco pessoal ou social, pela ocorrência de violação de direitos.

O papel do CREAS e suas competências enquanto órgão da política de assistência social fazem parte de um arcabouço de leis e normativas que fundamentam e definem esta política social e regulam o SUAS, desse modo, devem ser compreendidos a partir da definição da finalidade/objetivos da política do SUAS, ou seja, afiançar seguranças socioassistenciais, na perspectiva de proteção social, conforme descrito nas orientações técnicas do CREAS.

O caderno de orientações destaca ainda a importância de se compreender e delimitar quais as competências do CREAS para o desempenho efetivo de seu papel enquanto equipamento do SUAS, para que seja possível elucidar qual seu papel e buscar fortalecer a sua identidade na rede intersetorial e também evitar a incorporação de demandas que competem a outros serviços ou equipamentos da rede socioassistencial, de outras políticas setoriais ou mesmo de órgãos de defesa de direitos. Desse modo, expressa ainda que ao CREAS não cabe

"I) ocupar lacunas provenientes da ausência de atendimentos que devem ser ofertados na rede pelas outras políticas públicas e/ou órgãos de defesa de direitos; II) ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou órgãos, e por conseguinte, as funções de sua equipe com a de equipes interprofissionais de outros atores da rede, como, por exemplo, da segurança pública (delegacias especializadas, unidades do sistema prisional, etc), órgãos de defesa e responsabilização (poder judiciário, ministério público, defensoria pública e conselho tutelar) ou de outras políticas (saúde mental, etc) e por fim III) assumir a atribuição de investigação para a responsabilização dos autores de violência, tendo em vista que seu papel institucional é definido pelo papel e escopo de competências do SUAS" (p.26,27).

Porém, como vemos, ainda que esteja claramente delimitado qual é o papel institucional do CREAS e qual é o tipo de trabalho a ser desenvolvido neste equipamento, em nosso cotidiano profissional é muito comum nos depararmos com situações nas quais somos chamados a elaborar relatórios com objetivos que não coincidem com os objetivos do trabalho social na proteção social especial. Vale ressaltar que isto vem sendo recorrente também no âmbito da proteção social básica, conforme tenho visto nos relatos dos profissionais.

De acordo com o caderno de orientações técnicas a elaboração de relatórios sobre os atendimentos e acompanhamento das famílias e indivíduos constitui uma importante competência do CREAS, ressaltando que estes não devem se confundir com a elaboração de laudos periciais, relatórios ou outros documentos que possuam finalidade investigativa que constituem atribuição das equipes interprofissionais dos órgãos do sistema de defesa e responsabilização.

Quando ocorrer a solicitação é necessário que seja resguardado o disposto nos códigos de ética e nas orientações dos respectivos conselhos de cada categoria profissional, ou seja, é necessário que se garanta a autonomia profissional na elaboração dos relatórios e na condução do trabalho social desenvolvido. É necessário que haja uma análise criteriosa da equipe de profissionais sobre as solicitações emitidas pelos órgãos de defesa e responsabilização, tendo em vista que a não observância do que é solicitado, pode resultar na elaboração de relatórios que expressam infrações éticas, distanciamento dos objetivos da política de assistência social, mera descrição de fatos sem análise de conjuntura, culpabilização das famílias e/ou das vítimas, e permitir ainda a interferência dos órgãos na forma como se dá o trabalho da equipe, dentre outras questões.

Os documentos de referência que se constituem como os parâmetros que orientam o trabalho social são claros e devem ser conhecidos e estudados pelas equipes de referência para respaldar o trabalho, bem como as respostas as solicitações equivocadas que recorrentemente recebemos.

Importante também é ter em mente a função de proteção social, bem como os objetivos estabelecidos no arcabouço da política de assistência social para que não sejam confundidos os papéis da equipe do CREAS com os das equipes interprofissionais que integram (ou deveriam integrar) os órgãos do sistema de justiça. Os órgãos que nos fazem as solicitações podem e devem fazê-las uma vez que não são obrigados a saber o que está de acordo ou não com os respectivos códigos de ética profissionais ou que extrapolam os objetivos do trabalho no equipamento. Cabe a nós enquanto trabalhadores do SUAS defendermos nossa autonomia profissional, embasando os relatórios de acordo com as prerrogativas e dentro dos limites éticos, bem como a defesa de seu fazer profissional de acordo com os objetivos do SUAS, desempenhando suas atribuições profissionais com autonomia, recusando a interferência profissional de quem quer que seja, que não esteja capacitado para opinar sobre o trabalho desenvolvido na política de assistência social.

Temos um sistema de justiça que opera ainda na lógica punitiva, de julgamento moral, criminalização e culpabilização de famílias e indivíduos, especialmente os mais pobres e temos que ter muito claramente definido o nosso papel enquanto profissionais do SUAS, que é o da garantia de direitos e não o contrário. Especialmente para os assistentes sociais, nosso código de ética tem como princípio o "empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças. Logo, não estamos no SUAS para compactuar com lógicas punitivas e culpabilizadoras que vem sendo direcionadas aos nossos usuários e que nos são repassadas através da requisição de relatórios a serem respondidos ao sistema de justiça.

Desse modo, buscando superar essas questões, respaldar as equipes e estabelecer um fluxo entre o SUAS e os órgãos que compõe o sistema de justiça foi lançada em 2016 a nota técnica 02/2016, expedida pelo MDS, que traz importantes subsídios no que diz respeito a natureza do trabalho social desenvolvido pelas equipes de referência do SUAS e também para subsidiar o diálogo na relação interinstitucional do sistema de justiça como o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.

A nota considera ainda que as requisições judiciais aos trabalhadores do SUAS para o desenvolvimento de atividades inerentes a outros órgãos e políticas compromete o trabalho social com famílias e indivíduos, ocasionando prejuízos como a fragilização ético-político-profissional e destituição do caráter protetivo inerente ao SUAS, por exemplo. Utilizei algumas partes as quais julguei que se relacionam mais com o objetivo do texto, porém é muito importante que as equipes estejam cientes sobre o que versa esta nota técnica, pois constituiu uma importante ferramenta de respaldo legal na ocorrência de requisições equivocadas do sistema de justiça.

A perspectiva da interface do trabalho do CREAS com o sistema de justiça deve ser a de reforço da proteção social e a garantia dos direitos, num perspectiva de complementaridade entre a política de assistência social, o sistema de garantia de direitos e as demais políticas setoriais.

A intenção do texto foi fazer uma breve reflexão sobre a autonomia profissional dos trabalhadores do SUAS, pontuando alguns parâmetros que resguardam a garantia do exercício desta autonomia aos profissionais, não somente do Serviço Social, mas de todas as outras categorias inseridas no SUAS.

A principal mensagem que desejo passar com este texto é de que não nos subalternizemos enquanto trabalhadores da política de assistência social, não deixemos que outras profissões tirem nossa autonomia e menosprezem nosso saber profissional, indicando qual caminho percorrer em nosso trabalho, qual direcionamento e conduta devemos adotar junto aos nossos usuários, através de exigências surreais que além de extrapolar nossas funções dentro do SUAS, ainda afrontam nossos códigos de ética. Vamos refletir sempre em nossa prática profissional, na utilização de nossos instrumentos, no atendimento aos nossos usuários: para que(m) serve meu conhecimento?

Referências Bibliográficas

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS – Brasília, DF. 2011.

Ferreira, Stela da Silva. NOB-RH Anotada e Comentada – Brasília, DF: MDS; Secretaria Nacional de Assistência Social, 2011.

Código de Ética do Assistente Social, 1993.

Nota Técnica SNAS/MDS Nº02/2016. Relação entre o SUAS e o sistema de justiça.

Fonte do texto e da imagem: psicologia.wordpress.com/2017/08/22/autonomia-profissional-e-o-trabalho-no-creas/" target="_blank">CRAS psicologia